Imunidade material não acoberta abusos no discurso parlamentar
A imunidade material do parlamentar, garantida pela Constituição Federal (CF), representa, conforme aponta o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão, “um instrumento vital destinado a viabilizar o exercício independente do mandato representativo” (REsp 1.338.010). Trata-se de uma prerrogativa, e não de um privilégio, que busca resguardar as instituições legislativas.
Além disso, a inviolabilidade civil e penal por quaisquer opiniões, palavras e votos (artigo 53 da CF) abre portas para a livre expressão e, em consequência disso, para o debate político, visando assegurar a própria democracia, como observa o ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário 600.063, julgado em fevereiro de 2015).
Contudo, de acordo com a jurisprudência do STJ sobre o tema, essa prerrogativa não é absoluta, já que não abrange manifestações desvinculadas do exercício do mandato, mas apenas as que tenham conexão com o desempenho da função legislativa, ou que tenham sido proferidas em razão dela.
No que diz respeito ao seu alcance, a imunidade material do parlamentar sempre foi objeto de debates e questionamentos, já que tem sido usada, muitas vezes, para cometimento de abusos por seus titulares, que se valem de ofensas para ferir a reputação ou a imagem de adversários.
Vereadores
O artigo 29, inciso VIII, da CF estende aos vereadores a imunidade material, no exercício do mandato e na circunscrição do município. Embora o dispositivo não faça menção à responsabilidade civil, de acordo com o ministro Luis Felipe Salomão, a inviolabilidade também se estende a essa esfera.
Em junho de 2015, a Quarta Turma julgou o caso de um vereador do município de Mirassol (SP) que teria ofendido a honra da assessora da prefeitura, referindo-se a ela como um “câncer infiltrado na administração”, ao informar sobre a existência de processo de improbidade contra ela (REsp 1.338.010).
A respeito do pedido de indenização por danos morais, as instâncias ordinárias consideraram que a manifestação não ultrapassara os limites do exercício do seu mandato legislativo, “tendo ele exercido o seu poder-dever de fiscalização e informação à sociedade da existência de processo contra a recorrente”. O entendimento foi mantido no STJ.
Responsabilidade civil
Ofensas contra a reputação ou a imagem são passíveis de responsabilização civil, considerou o relator, ministro Salomão. Entretanto, há uma restrição: desde que não haja por trás alguma causa excludente de ilicitude, como a prevista no artigo 188, inciso I, do Código Civil, “que reconhece a conformação ao direito do ato praticado no exercício regular de um direito reconhecido”.
Isso porque, segundo o ministro, o artigo 29, inciso VIII, da Constituição é claro no sentido de que a imunidade material dos vereadores não abrange as manifestações divorciadas do exercício do mandato.
No âmbito penal, a prerrogativa não pode ser invocada para eximir de responsabilidade vereador que utiliza sua influência em atos de liderança, ou para incitar a participação em manifestação pública causadora de impedimento ou dificuldade no funcionamento de transporte público (RHC 24.193), ou ainda, que se vale do cargo para divulgar informações falsas sobre instituição financeira (HC 238.481).
Há ainda outra hipótese. A utilização da tribuna da Câmara Municipal para proferir ameaças não decorre da atividade parlamentar e nem mesmo traz benefício ao município; por essa razão, não está acobertada pela imunidade assegurada no artigo 29, inciso VIII, da CF – que não é absoluta e nem mesmo ilimitada. (AgRg no HC 296.902).
CPI
Incide também a imunidade material quando o parlamentar profere palavras tidas por ofensivas estando no exercício da presidência de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instaurada com a finalidade de investigar procedimentos realizados pelos ofendidos.
Sobre esse tema, a Corte Especial julgou o caso de um conselheiro do Tribunal de Contas do Paraná, relacionado ao período em que atuou como deputado estadual. Ao término dos trabalhos da CPI que investigou os procedimentos e a condução de falências e recuperação no estado, ele, como presidente, proferiu três discursos relatando as conclusões e referindo-se às pessoas envolvidas na investigação.
Na ocasião, imputou aos investigados a suposta participação em condutas criminosas. Essas acusações foram consideradas ofensivas pelos envolvidos. Para a relatora da queixa-crime ajuizada no STJ, ministra Laurita Vaz, “sobressai inequívoca a incidência da imunidade material parlamentar”, consagrada na jurisprudência do STF e do STJ.
O parecer do Ministério Público foi no mesmo sentido, pela rejeição da queixa-crime (processo em segredo de Justiça).
Entrevista
Quando o parlamentar não se restringe a narrar os fatos considerados delituosos, mas extrapola, utilizando palavras que desqualificam moralmente o ofendido e imputa-lhe, falsamente, crime, a imunidade pode ser afastada.
Foi o que aconteceu no julgamento do habeas corpus de um deputado estadual que, conforme constava na denúncia, teria ofendido a honra de delegado da Polícia Civil de Goiás e ainda proferido ameaças contra ele, em entrevista na televisão local, reproduzida em site na internet (HC 353.829).
No STJ, a defesa pediu o trancamento da ação penal. “Esta corte possui entendimento de que não estão acobertadas pela imunidade as palavras proferidas fora do exercício normal do mandato, ou que não guardam estreita relação com a atividade político-legislativa do parlamentar”, afirmou o relator, ministro Nefi Cordeiro, para quem as ofensas extrapolaram o contexto político relacionado ao mandato do deputado.
Em decisão unânime, o habeas corpus não foi conhecido.
Movimento grevista
A princípio, liderar movimento grevista, incitar policiais militares e bombeiros a paralisar suas atividades e a desobedecer às ordens de seus superiores hierárquicos são atitudes que não possuem elo com as atividades político-legislativas.
Esse foi o entendimento adotado pela Quinta Turma em julgamento de habeas corpus impetrado pela defesa de um deputado do estado do Acre, que buscava o trancamento de ação penal (HC 272.210).
Consta na denúncia que o deputado encabeçou o movimento de reivindicação salarial e incitou os policiais militares e bombeiros do estado a paralisar suas atividades.
Além disso, há informações no processo de que, sob a liderança dele, os grevistas colocaram uma corrente com cadeado no portão do quartel do comando geral para obstruir a passagem. O deputado teria, ainda, influenciado os grevistas a desobedecer à ordem do comandante da polícia para que a passagem fosse liberada.
Graves prejuízos
“Da leitura da peça acusatória ofertada pelo órgão ministerial, verifica-se a inexistência de qualquer liame entre a conduta imputada ao paciente e o exercício do mandato de deputado estadual”, verificou o relator, ministro Jorge Mussi.
Segundo o magistrado, a conduta do parlamentar foi decisiva para que os militares participantes do movimento paralisassem suas atividades, “em flagrante desrespeito à Constituição Federal”, o que, para ele, acarretou graves prejuízos à ordem e à disciplina militar, bem como à segurança pública. Em decisão unânime, o habeas corpus foi negado.